Sabe, recentemente me vi pensando, questionando – o que é terapia? Sendo terapeuta, essa é uma questão que me ronda de vez em quando. Ao que serve os propósitos da terapia? Por que e para que essa profissão foi criada? Qual a necessidade de criar um “setting terapêutico”, com horário de encontro e horário de término, com periodicidade fixa, com regras e etc etc? Para que esse paranauê todo, que para mim não se trata de nada além, nada mais, do que um simples – e não menos importante por isso – contato humano que gira em torno do essencial? Um contato humano que vai para além das superficialidades e banalidades das preocupações da vida cotidiana e adentra o universo interior, particular e sagrado, no mais fiel sentido da palavra, de cada pessoa. Do que esse tal setting terapêutico e todos seus designíos difere do contato humano natural que ocorre – ou melhor, pode ocorrer – em qualquer lugar, em qualquer momento em que duas pessoas se debrucem sobre uma conversa íntima, verdadeira e profunda?
Sendo terapeuta, essas questões vinham me incomodam e exigindo de mim uma resposta, um posicionamento. Tendo mudado de linha recentemente, e mesmo antigamente, quando conhecimento até que havia razoavelmente, mas método, havia pouco, eu me questionava: o que que eu estou fazendo? Qual é o meu trabalho? Será que eu estou fazendo certo? Todas essas perguntas, que eu acho que já passaram bastante pela cabeça de todos jovens terapeutas comprometidos, Íntegros e éticos, passavam pela minha também. Isso me fez ir atrás de respostas, como sempre. Meus caminhos usuais são sempre: boa leitura, conversas com aqueles que eu confio que podem me ajudar e, principalmente, os meus próprios insights. São eles que produzem a resposta, são eles que me contam os segredos que ninguém mais me conta. São eles que, quando eu fecho a “boca” da minha cabeça e humildemente me entrego, me guiam e me mostram o caminho. Enfim, é justamente as respostas para essas perguntas que eu vou tentar começar a esboçar hoje. De longe, não se trata de um assunto acabado, mas apenas de uma primeira tentativa de registrar a minha voz a respeito do assunto. Do que se trata, a tal da terapia?
Temos alguns aspectos práticos para conversar a respeito, vou enumerá-los apenas para não me perder, mas em seguida retornarei ao começo: do que ser trata a dona terapia na sua essência. Aspectos práticos que abordarei a seguir são: quais são as diferentes “caras” que uma terapia pode tomar (na linguagem sem graça da técnica seria: quais são as possíveis formas de transferência); aspectos projetivos da transferência – qual é a sua importância e o que a constitui; e finalmente, a que serve as regras de periodicidade, setting e contrato. Tendo dito isso, vamos para o que interessa: do que ser trata a terapia, no fiel sentido da palavra?
Aprendi com meu amigo, Roberto, que a palavra “terapia” vem do grego “therapeia” que significa “o ato de cuidar dos deuses”, e mais, “cliné”, de onde deriva a palavra “clínica” significa uma cama que se colocava nos templos, onde a pessoa que precisava ser curada ia para dormir e sonhar. Assim, a cura era oriunda dos sonhos que a pessoa tinha na presença do numinoso, além de outras coisas. Esse lembrete etimológico me levou de volta para Jung e na noção do numinoso, do arquetípico e da função transcendente. Do ponto de vista jungiano, o que cura a neurose é a vivência do numinoso, pois é através dele que a função transcendente atua e pode haver a união dos opostos. Muito bem, se é assim, o terapeuta é aquele que cuida dos deuses, que mantém a conexão com eles (“deuses” aqui é entendido como seu significado psicológico: estruturas arquetípicas que compõem nosso inconsciente coletivo e se apresentam no centro de todas as vivências carregadas de conteúdo afetivo – no centro de nossos complexos). O terapeuta então, é alguém quem tem a consciência de ser afetado – e de afetar – os deuses; conhece e reconhece a importância involuntária que eles exercem sobre o ego. Assim, o terapeuta é aquele que se mantém em contato com os deuses, que evita a unilateralização da consciência, que faz do simbólico seu fiel amigo que é sempre presente, que luta para manter uma harmonia psíquica, tornando possível a cocriação da vida ao lado deles (ego e arquétipos). É nesse espírito diplomático que eu vejo o terapeuta situado. Logo, o que faria alguém procurar um terapeuta? A necessidade de voltar à harmonia interior, certamente.
A desarmonia é provocada, quase sempre, pela desconsideração aos deuses (unilateralização da consciência), ou então, pelo desentendimento entre eles. Os deuses podem brigar entre eles, ou então, podem ser excluídos da vida consciente. Aí temos problemas, nessas duas situações, pois a casa é de todos, todos pertencem e todos querem existir. Quando um se impõe sobre o outro – seja o ego sobre a sombra, seja um complexo qualquer sobre outro – vamos ter uma guerra civil, uma guerra interior, numa tentativa de reestabelecer a harmonia. Às vezes, escutamos o real clamor dessa guerra, outras vezes, não; revidamos, polarizamos mais, nos afastamos ainda mais da sombra numa tentativa de nos entrincheirarmos para nos proteger contra suas investidas; até o momento em que uma neurose se constela. É aí que o terapeuta entra na história: quando não dá mais. Quando precisamos responder, quando precisamos de ajuda para reestabelecer a harmonia, para abrir o diálogo e rever posturas que vemos tendo (principalmente com relação a nós mesmos). O terapeuta, nessa situação, serve de mediador entre a consciência e o inconsciente, entre o ego e a sombra, fazendo uma ponte para que o contato possa se estabelecer. Uma vez estabelecido o diálogo – que sempre se dá forma simbólica, pois ela é a linguagem capaz de conectar os dois polos – começamos a sensibilizar ambos os lados, começamos a perceber onde que a tensão está um pouco mais leve e lá tocamos, na tentativa de mobilizar essas estruturas para que saiam do estado de rigidez e se aproximem um pouco mais. Nessa leitura, o terapeuta tem que ser alguém que tem uma imensa habilidade de perceber a sutileza do campo psíquico do outro, de intervir no ponto mais vulnerável (em termos de tensão – menos tenso) e ir mobilizando as estruturas. Há de se ter um bom pensamento ao lado de uma auspiciosa intuição!
O terapeuta usa da alma para atuar. Ela é o seu principal instrumento de trabalho. Mas não serve qualquer alma, se não, ela não serviria de critério algum para designar o ofício da terapia. A alma do terapeuta tem uma característica especial: ela precisa ser maleabilizada pelos confrontos com a realidade. Precisa ser daquelas cascudas, que sofreu, elaborou, respondeu, reergueu e produziu vida, várias e várias vezes. Precisa ser uma alma que tenha diálogo aberto com o ego, com a mente consciente. Precisa ser um conjunto o mais harmônico possível, no qual cada um conhece, muito bem conhecido, o seu papel, o seu lugar na casa da psique, e precisam topar tecerem juntos, respostas para cada nova demanda que aparece. Muito bem, agora, por que o principal instrumento de trabalho do terapeuta é a alma? Porque é através dela que percebemos os pontos de vulnerabilidade do outro, que percebemos qual fio puxar primeiro, que percebemos a demanda essencial, e não apenas aquilo que está sendo dito no plano manifesto. É através da afetação da alma, de entrar em contato com o conteúdo ali reprimido, que está gritando para ser ouvido, que temos a matéria prima do nosso trabalho, que se constitui justamente em OUVIR e perceber o não manifesto, o inconsciente.